Quem disse que privar um povo de sua língua é menos violento do que guerrear?
(Ray Gwyn Smith, Borderlands/La Frontera: The New Mestiza)
Tenho vivido crises com a poesia. Leia-se: tenho vivido crises com a palavra. Há alguns meses, tenho lido menos poesia e escrito menos ainda. Não sei ao certo como e por que começou, mas tem sido assim. Tenho inclusive feito um diário para anotar pensamentos, loucurinhas, observações difusas (aliás, vocês tem diário? estou adorando), e agora raramente escrevo em versos.
Mas aí: fui ver a peça do Gregório Duvivier semana passada, uma peça chamada O céu da língua, que está em cartaz no Carlos Gomes (ô teatro lindo), e é uma ode engraçada ao português, à poesia, às palavras das palavras. Tem tudo que eu amo: poesia, canção, etimologias, humor.
Saí com esta sensação: parece que te dão um beijão de língua, daqueles que a pessoa fica brincando com a língua na sua boca, e você sai tonto, apaixonado, um amor pela língua que é mágica e ridícula ao mesmo tempo.
Mas também saí com a impressão de que a minha crise com a poesia é uma crise com as palavras, com o próprio português, pois amá-lo, no nosso contexto, é contraditório. Pouco depois da peça, anotei no diário versinhos e lembretes: “comprar livro de poesia (João Cabral)” e “sobre este mundo, mundos, 7000 mil línguas”.
Me parece sintomático que a gente diga: eu domino esta língua, quando falamos de línguas fluentes, ou que elogiemos um texto pela capacidade de conduzir, controlar, as palavras. Acho muito curioso, aliás, como aplicamos verbos às metáforas da arte, e mais ainda, como muitas vezes eles são carregados de conotações que podem ser violentas, como dominar e controlar.
Ao “descobrir” uma nova terra, os portugueses fincavam nela um padrão, marco de pedra que demarcava que aquilo, a partir daquele instante, era propriedade da coroa. Tal uma língua fincada em algum lugar do cérebro, que vai se espalhando quando alguém corrige a fala de uma criança. É como dizer: eu tenho controle sobre você.
A nossa língua portuguesa vem disso, um padrão fincado na terra, com brasão e palavras em pedra. Camões já exaltava em Os Lusíadas: “se mais mundos houvera, lá chegará [Portugal]”. E me parece que chegar a um lugar é (antes) dizer que chegou, e se Portugal exalta, na poesia, as suas conquistas coloniais (com Camões e Pessoa), é porque sabe que conquistar o mundo é conquistar a língua.
E não sou eu quem diz, muita gente já estudou o papel da linguagem na colonização. A peça de Gregório me fez pensar muito nisso e em outras coisas mais. Saí com a cabeça fervendo e anotei no diário fragmentos que vieram parar neste texto.
E se escrevo em português, esta língua em que você me lê, é porque compartilhamos algo. Por isso te pergunto, me pergunto: como chegamos até aqui? Onde fincamos este padrão?
São mais de 200 línguas só no Brasil, e mais de 7000 no mundo, mundos dentro deste, e dentro dele outros, cheios de vidas e nomes e apelidos e polícias e gírias e cantos e livrarias e onomatopeias e noites e dias.
É preciso indagar a língua, desconfiar dela. Ou então recitar ingênuos Fernando Pessoa, em Mensagem: “deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. E num passe de mágica.
Tudo começa em algum lugar na palavra. Se voltarmos novamente à história do Brasil, eu acho incrível, por exemplo, que o mito da independência se estabeleça pelo grito, isto é, o famoso grito do Ipiranga de D. Pedro I. E num passe de mágica, ao dizer em voz alta, somos um país.
Mais ainda, o português que falamos é o resultado de interações, agências, resistências, tensões, festas em frestas estreitas por onde não passa uma pessoa, mas podem passar inúmeras palavras.
Banana, fubá, moleque, camundongo, cafuné, moribundo, macumba, cachaça, dengo, mengo etc. A lista é grande. Isso sem contar as misturas e palavras de línguas indígenas. Sempre achei importante que dengo e cafuné fossem palavras de origem banto, fincadas em nós pela fala e dicção de pessoas escravizadas, estas que lançaram mundos no mundo tacanho e triste. Percebam: dengo, cafuné.
Saí da peça tão encantada que escrevi um poema, dois, três, no meu diário. E pude voar um pouquinho, como voam os cantores quando cantam, os pintores quando pintam, cozinheiros quando cozinham etc.
Engraçado que toda a minha vida foi assim, me agarrei nas palavras como quem agarra um piloto de moto em altíssima velocidade, torcendo para não cair, mas também curtindo a adrenalina no corpo. Talvez por isso, desde que estava na faculdade de história, lá atrás, tenho escutado a seguinte pergunta: por que você não foi para a letras?
A primeira vez ouvi isso, foi de uma professora muito querida, que também era psicanalista e tinha uma intuição afiada, me fazendo pensar naquilo por dias. Recentemente, para a minha surpresa, voltei a ser indagada sobre essa questão. A verdade é que nunca soube responder, mas hoje imagino que, se tivesse feito letras, dados os meus interesses difusos, talvez me perguntassem com frequência: e por que você não foi para a história?

Na adolescência, fiz dois anos de aula de francês e meu professor, Dhimi, era da Republica Democrática do Congo. Veio estudar na UERJ com uma bolsa do governo federal brasileiro e trabalhava nesse cursinho, na Freguesia. Vez ou outra, nas aulas, ele nos ensinava palavras da língua falada na comunidade onde cresceu, no Congo, quase fronteira com Angola. O idioma era uma variação do Kikongo, ele dizia. Uma vez a coordenação do curso descobriu, acho que uma das alunas contou, e ele foi advertido. Ali era um curso de francês e não de língua africana, disseram.
Lembrei disso outro dia, quando li num artigo a seguinte reflexão: por que dizemos império asteca? Ou império do Mali, reino do Congo? É preciso desconfiar desses conceitos eurocentrados, impérios, monarquias, reinos, para descrever culturas ameríndias e africanas e suas organizações. Assim também acontece com a ideia de civilização. Sociedades como Inca e Asteca parecem ter ganhado o certificado europeu que as permite serem chamadas de “civilizações”, enquanto as indígenas do litoral Atlântico sul, como as de origem tupi, são “tribos” e “grupos nômades”.
Me pergunto como, quando cairão os pilares/palavras que sustentam o mundo. Não é à toa, percebam, que os primeiros versos dos Lusíadas contenham: armas, barões, ocidental, lusitana. Como, quando cairão? É possível dar uma aula inteira sobre colonialismo só com esses primeiros versos.
Lembro de Camões e do desejo colonial de quanto mais mundos houver, lá chegar. Nem que seja para categorizar, definir, nomear, pois sabe-se lá quantos padrões fincamos sobre tudo que é vivo. O que quero, talvez isto, é deixar os portugais morrerem à míngua.

Há também uma autora angolana de que gosto muito, Djaimilia Pereira de Almeida, a qual definiu o português como “uma menina língua gigante, monstra, língua tornado, língua portuguesa”. Em seus livros, ela reflete sobre o colonialismo presente nas palavras, nas identidades, nas relações entre Portugal e Angola.
Tem outro livro dela que li recentemente, no qual afirma (anotei no diário), “o contramundo são os meus lábios”. E como não se pode desfincar padrões de tão firmes, talvez seja possível ir se apropriando deles, de palavra em palavra, até que reste pó e argila e línguas e lábios.
Porque “a frase, o conceito, o enrede, o verso (sobretudo o verso) é que pode lançar mundos no mundo”, escreveu Caetano em Livros. De modo que uma palavra puxa a outra, e outra, e assim por diante, me lembrei do Drummond dizendo que “o português são dois; o outro, é mistério”. Há, também, a Adília Lopes (anotei dia desses no diário), para quem “os poemas são moinhos que andam ao contrário” ou, ainda, morro de ternura por esse: “os livros são como as infâncias”.
Eu gosto das palavras que brincam e não se explicam. Mas o meu verso preferido sobre tudo isso, está no refrão de Língua. As rimas se esbarrando e ruindo e cantando, até desembocar na pergunta que tem sido minha, enfim, desde o início: o que quer, o que pode esta língua?
Se gostou (ou não) me escreve de volta. Adoro essas trocas (:
amei amei amei, eu não conhecia essa música do Caetano, to viciada. valeu Bru🫶
Querida Bruna,
Ler seu texto me fez lembrar do romance "Budapeste", do Chico Buarque. Não sei se já leu. É a história de um brasileiro que vai morar na Hungria e a relação dele com as línguas portuguesa e húngara. Tem um momento em que ele se vê simplesmente com saudade de falar português e profere palavras aleatórias da nossa língua: travesseiro, chão, Ipanema. Salvo engano, vi um exemplar na biblioteca do Sesc Tijuca.
Quando te conheci e soube que era professora, também te perguntei se vc tinha feito Letras hahahah